“A maquineta de roubar pitangas ...”

“A maquineta de roubar pitangas ...”

6 de abril de 2018
por Amanda Ribeiro -
Colégio Recanto - Rio de Janeiro, RJ


Acho que teria dado um bom engenheiro. De que eu me lembre, as primeiras manifestações da minha inteligência foram na área de engenharia. A primeira delas, eu devia ter uns quatro anos, foi uma tentativa frustrada de fazer levitar um grave. Encantado com quatro pinos roliços de madeira que se encontravam na cristaleira, retirei-os dos buracos onde se encontravam, sem notar que eles eram o suporte de uma prateleira de vidro cheio de taças. Para minha decepção e contrariando minhas expectativas, a prateleira não flutuou, o que provocou um armagedon de vidros. O acontecido, entretanto, não me desencorajou, e se os acidentes da vida não tivessem me empurrado por caminhos não planejados, é certo que hoje eu seria um engenheiro.

Engenharia é coisa bonita. A começar pela palavra que vem do latim, ingenium, que quer dizer “a agudeza, a viveza, o entendimento, o espírito, engenhosidade, coisa inventada com engenho”. Os engenheiros, assim, são pessoas que se dedicam a fabricar artefatos inteligentes.

As raízes do impulso para a engenharia são facilmente compreensíveis. O corpo deseja algo. Mas ele mesmo não tem os recursos físicos para conseguir aquilo que deseja. O seu desejo só será satisfatório se a inteligência for capaz de construir uma ferramenta que lhe permita atingir o seu objeto. Rapunzel operou com inteligência engenharial quando deixou crescer seus cabelos. Não deixou que eles crescessem por razão de vaidade. Não lhe importava que fossem sedosos, macios e brilhantes. Seus cabelos tinham que ser uma corda forte o bastante para que o seu amado pudesse por eles subir. Os cabelos de Rapunzel eram um “artefato inteligente” – um meio para a realização do desejo. Essa estória, do ponta de vista psicanalítico, se presta a uma interpretação deliciosa: os cabelos crescem na cabeça. Cabelos: metáforas de idéias ...


A capacidade de construir “artefato inteligente” não é monopólio dos seres humanos. As colméias das abelhas, os ninhos dos guaxes, dos beija-flores, do joão-de-barro, as teias das aranhas, as conchas dos caracóis – são todos assombros engenhariais.

Dos homens dotados com inteligência engenharial o que mais me assombra é Leonardo da Vinci, que além de ser músico e pintor, era também arquiteto, fez projetos urbanísticos – Brasília não seria o horror que é se ele tivesse sido o arquiteto – e fez planos de uma máquina voadora que permitisse aos homens voar como pássaros, realizando assim o sonho imortal de Ícaro – ser pássaro é ser livre! – e uma outra para navegar no fundo dos mares, permitindo aos homens navegar entre os peixes.Leonardo da Vinci foi uma prova viva de que a beleza e a inteligência engenharial podem andar de mãos dadas. O engenheiro pode amar a arte.

Defino o engenheiro: é uma pessoa que se dedica a construir pontes entre o corpo e o desejo. “Ponte”, aqui , eu a uso no sentido metafórico. Pontes são construídas sobre abismos. Pelas pontes os encontros são possíveis. Encontros entre o corpo e o seu desejo. Quando o desejo é realizado o corpo fica feliz. Quero, agora, relatar a minha primeira experiência na construção de um “artefato inteligente”. Foi, realmente, uma invenção, porque tal artefato, na medida do meu conhecimento, jamais havia sido construído antes.

Eu tinha seis anos de idade. Ao lado da minha casa pequena, uma casa com um quintal enorme, cheio de árvores frutíferas. Entre elas perto do muro, uma árvore que eu nunca havia visto, carregadinha com umas frutinhas vermelhas, miniaturas delicadas e brilhantes de moranga: pitanga. O nome já diz do fascínio: pi x tanga: o erótico multiplicado por 3,1416. Ela, a sem-vergonha vermelha, tinha de ser deliciosa. Imaginei o prazer que eu teria comendo aquela frutinha. O prazer imaginado não dá descanso. Já o prazer realizado cansa logo. Quantos pedaços de picanha, quantos copos de chope, quantos beijos a gente agüenta? Prazer realizado tem vida curta: morre logo ( podendo ressuscitar depois de três dias) . Mas o prazer não realizado é um tormento. Disse o poeta inglês William Blake que “o prazer engravida”. Isso mesmo: gravidez. Não tem jeito de parar.

Mas as pitangas estavam longe do meu braço. Foi então que, do lugar do desejo, partiu uma ordem para a inteligência. Na verdade, está errado falar em inteligência no singular. Nosso corpo é uma casa onde, em cada quarto, jaz adormecida, encantada, uma inteligência diferente: a lógica, a culinária, a esportiva, a musical, a humorística, a religiosa, a lúdica, a mecânica, a criminosa, a pedagógica, a médica – e uma infinidade de outras. Cada uma serve para uma operação específica. Adormecidas. Só acordarão quando forem tocadas por um beijo de amor. Aquela estória do Aladim e a lâmpada maravilhosa: o gênio da garrafa é a inteligência. O gênio não tem idéias próprias: ele só obedece às ordens do seu dono. Assim são as inteligências: elas obedecem àquilo que o desejo determina.


Mas as pitangas estavam longe do meu braço. Foi então que, do lugar do desejo, partiu uma ordem para a inteligência. Na verdade, está errado falar em inteligência no singular. Nosso corpo é uma casa onde, em cada quarto, jaz adormecida, encantada, uma inteligência diferente: a lógica, a culinária, a esportiva, a musical, a humorística, a religiosa, a lúdica, a mecânica, a criminosa, a pedagógica, a médica – e uma infinidade de outras. Cada uma serve para uma operação específica. Adormecidas. Só acordarão quando forem tocadas por um beijo de amor. Aquela estória do Aladim e a lâmpada maravilhosa: o gênio da garrafa é a inteligência. O gênio não tem idéias próprias: ele só obedece às ordens do seu dono. Assim são as inteligências: elas obedecem àquilo que o desejo determina.

As inteligências dormem. Inúteis são todas as tentativas de acordá-las por meio da força e das ameaças. As inteligências só entendem os argumentos do desejo: elas são ferramentas e brinquedos do desejo.

A tarefa do professor: mostrar a frutinha. Comê-la diante dos olhos dos alunos. Provocar a fome. Erotizar os olhos. Fazê-los babar de desejo. Acordar a inteligência adormecida. Aí a cabeça fica grávida: engorda com idéias. E quando a cabeça engravida não há nada que segure o corpo.


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