Disciplina e Educação
Dr. Flávio Gikovate - médico psiquiatra, diretor do Instituto de Psicoterapia de São Paulo e autor de vários livros, entre eles Ser Livre e Homem, o Sexo Frágil?
De repente, no melhor do sono, toca o despertador. É hora de levantar para ir à escola ou ao trabalho. Não é raro que, exatamente neste instante, se trave uma importante batalha. Por um lado, o sono, a preguiça, o desejo de continuar deitado devaneando e imaginando todo tipo de situação gostosa. Por outro, a noção do dever, da obrigação, do compromisso assumido. A vontade mostra uma direção; a razão, a direção oposta.
Na minha opinião, uma boa definição de disciplina seria a aquisição da capacidade que permite que a razão seja mais forte e vença nossas vontades e nossa preguiça. É porque desenvolvemos essa qualidade que conseguimos fazer exercícios maçantes todos os dias na mesma hora. É porque somos disciplinados que evitamos comidas com muitas calorias ou prejudiciais à saúde. Vem da razão a força que nos faz abrir mão de coisas materiais para poupar e atingir um objetivo maior. Pessoas disciplinadas são capazes de estudar quando estavam mesmo é com vontade de assistir à televisão ou bater papo com os amigos.
Não resta a menor dúvida: pessoa disciplinadas terão maiores chances de sucesso nas atividades às quais se dedicarem. Tenderão a ser criaturas aplicadas e determinadas, buscando com afinco alcançar seus objetivos. Se tiverem razoável talento, vencerão no jogo competitivo da vida. Entre talento e disciplina, é melhor ter os dois. Porém, a longo prazo, acho que a disciplina é mais importante.
Não nascemos disciplinados. Passamos os primeiros tempos de nossa existência cheios de vontades e amargando fortes dores e revoltas sempre que nossos desejos não são satisfeitos. Toleramos mal as frustrações. É verdade que, desde o início, há pessoas que aceitam melhor as contrariedades. Essa capacidade de aceitação aumenta à medida que se desenvolvem a linguagem e o raciocínio lógico. Ambos nos ajudam a compreender por que nossas vontades nem sempre podem ser satisfeitas. O fato de existirem explicações e razões que determinam a não realização de determinado desejo nos acalma e nos deixa mais tolerantes para com frustrações inexoráveis. Aprendemos, pela reflexão e pela lógica, a agüentar melhor as dores. Entendê-las nos ajuda a suportá-las.
Acredito que a principal tarefa da educação, especialmente durante os primeiros anos de vida, consista em desenvolver a razão e suas forças com intuito de sermos capazes de “domesticar” nossas vontades. Uma visão equivocada da psicologia nos conduziu, nas últimas décadas, a dar muita ênfase e privilegiar o livre exercício do desejo. O papel da razão - freio limitador dos impulsos - foi encarado como algo repressivo e negativo. Além disso, os pais, com medo de traumatizar os filhos e de perder o amor deles, têm se furtado à tarefa, às vezes desagradável, de estabelecer limites e estimular as crianças a usar com eficiência a razão para dirigir suas vidas.
Na educação infantil, essa é a tarefa número um dos pais. Ao aprender a utilizar a razão em benefício próprio, a criança e depois o adulto experimentam enorme satisfação quando se sentem disciplinados. Sim, porque é nestes momentos que nos consideramos animais mais sofisticados, chamados como propriedade de racionais. A alegria íntima de quem se levanta cedo, faz exercícios e chega na hora certa aos compromissos assumidos é algo que não pode ser subestimado. A gente se sente forte, quando consegue se controlar (coisa muito difícil). Sente que venceu a batalha mais árdua, que é a batalha interior. A auto-estima logicamente aumenta.
Para que nossos filhos venham experimentar essas sensações de contentamento e força, devemos lhes ensinar, desde cedo, a abrir mão de suas vontades, sempre que a razão assim achar conveniente e útil.