Famílias

Famílias

17 de abril de 2020
por Amanda Ribeiro -
Colégio Recanto - Rio de Janeiro, RJ


Ambientes de aprendizagem virtuais e a prática do trabalho remoto vêm promovendo maior convivência e interação entre crianças e suas famílias. Se antes era comum que eles pouco se encontrassem durante a semana, as medidas para frear a curva de disseminação do COVID-19 impuseram um convívio intenso que traz inúmeros desafios.

O psicanalista e professor Christian Dunker promoveu, em 25 de março, a transmissão Pais e filhos finalmente juntos em casa, que abordou “a percepção do especialista sobre como famílias podem se reinventar no momento atual, como as rotinas podem ser adaptadas e o que fazer em casos de pais separados e guarda compartilhada dos filhos.”

Confira abaixo os principais trechos da conversa com o psicanalista:

1. Temos recebido muitos questionamentos sobre como as famílias podem se reinventar nesse momento e quais são os principais problemas e desafios que surgem em tempos de confinamento. Qual é sua visão de forma geral?

Christian Dunker: Devemos começar considerando o caráter totalmente inédito do que estamos vivendo. É a primeira vez que estamos confinados dentro de casa por um período que pode ser bastante longo, com uma indeterminação do que pode acontecer. Isso reformula nosso cotidiano que, em geral, é marcado por uma forte divisão entre casa e rua.

Precisamos aproximar essa distância entre os universo privado e público. É preciso muita tolerância, aceitação e respeito porque as crianças vão, eventualmente, sofrer mais do que os adultos, já que boa parte das interações presenciais que elas precisam são proibidas nesse momento. Mesmo que a gente entenda e reconheça a realidade sanitária, o nosso psiquismo não aceita as coisas tão facilmente.

O momento pode ser muito interessante para reconfigurar as relações familiares, porque famílias precisam entender que há uma tarefa pela frente e isso não será feito por decreto e sim com muita conversa. Françoise Dolto, uma psicanalista muito aceita que viveu na França durante ocupação alemã, tem um conselho: diga a verdade para as crianças. No tempo delas e com a linguagem adequada, mas não esconda seu medo e incerteza. Crianças são muito mais resilientes, fortes e capazes de colaborar do que imaginamos.

“As famílias vão ter que criar uma nova experiência compartilhada. É uma nova intimidade que está sendo proposta. E só construímos isso com esforço. Essa realidade foi ocultada na conversa das pessoas sobre tecnologias virtuais, redes e ensino a distância.”

2. Qual a importância de falar sobre pais e filhos finalmente juntos em casa?

Christian Dunker: A importância é grande porque, no fundo, é um assunto sobre o qual nunca nos debruçamos muito extensamente. Temos uma discussão nacional sobre “homeschooling” e educação a distância, principalmente quando se considera o ensino universitário. Entretanto, parece que as pessoas estavam muito fixadas no aspecto tecnológico da novidade e pouco tocadas pelo fato de que isso altera completamente a circulação dentro de casa, e também a repartição entre as esferas privada e pública. Além disso, interfere na rotina de trabalho e de cuidados com a casa. O encargo que os filhos representam para os pais é também uma novidade, por isso a expressão “finalmente juntos” no título da transmisssão.

As famílias vão ter que criar uma nova experiência compartilhada. É uma nova intimidade que está sendo proposta. E só construímos isso com esforço. Essa realidade foi ocultada na conversa das pessoas sobre tecnologias virtuais, redes e ensino a distância. E agora despencou nas famílias e nas escolas desavisadamente.

3. As pessoas estão buscando fórmulas para administrar horários, conciliar o cuidado e filhos pequenos com o ensino em casa e com o trabalho. O que você diria para pais e mães que não estão conseguindo organizar seu tempo?

Christian Dunker: Primeiro, há uma violação de expectativas. Nós imaginávamos que teríamos mais tempo por trabalhar de casa e que as demandas seriam diminuídas. Isso não está sendo exatamente verdade, pois no ambiente online rendemos menos. Nos primeiros dias tendemos a ter uma desorganização atencional, ficamos mais nervosos e inquietos, tendemos a ter insônia e nos alimentar mal. Da mesma forma que crianças estão precisando reinventar a escola, precisamos reinventar o trabalho. Teremos que ser tolerantes com as interrupções. Essa pode ser uma oportunidade de introduzir as crianças no nosso universo laboral.

Também é importante que as famílias deem suporte a esse processo de reformulação das aulas que as escolas estão passando. Teremos que participar da escola de um jeito que nunca fizemos. Além disso, um conselho para momentos de estresse, quando chegamos perto de perder a razão, é a descontinuidade, como ir pensar no banheiro. A situação de estar no mesmo ambiente gera algo que poderíamos chamar de deslizamento de afetos e pensamentos. Se você está com raiva, vai ficando com mais raiva até gritar e perder a cabeça, porque nós perdemos as pausas que tínhamos no dia: o cafézinho, a pessoa que liga, os momentos de dirigir.

“Se conseguirmos(sic) enxergar um sentido de responsabilidade coletiva que ultrapasse o núcleo familiar, acho que teremos um momento formativo dessa geração.”

4. É um momento especial para refazer esses combinados familiares?

Christian Dunker: Essa pode ser uma oportunidade para famílias literal e metaforicamente arrumarem a casa, suas gavetas, aquele baú e papéis que estão olhando para você há anos. A prática de arrumar-se, de encontrar o seu momento, fará parte dessa reformulação familiar que vamos viver, talvez aproximando as famílias. Crianças e adolescentes são muito impactadas quando o adulto que os protege mostra sua fragilidade real. Isso convoca para uma função restaurativa que pode deixar frutos muito importantes para o resto da vida.

5. Como lidar com emoções de pais e mães que estão distantes considerando a dificuldade de deslocamento nesse momento e uma eventual proibição do deslocamento?

Christian Dunker: É uma situação delicada para famílias em crise ou em casos em que a guarda compartilhada não está funcionando tão bem assim. Existem os métodos de falar pelo computador ou celular, mas também uma experiência muito bonita são pais e mães que escrevem diários para seus filhos ou gravam áudios contando histórias de famílias, por exemplo.

Uma ação que pode ajudar a mitigar essa situação e fugir um pouco desse modelo de conversa de “agora é hora de falar com seu pai/mãe”, é ligar a sua tela e ir fazer suas coisas. A criança está brincando, você pode ler ou assistir um jornal, dá uma olhada de vez em quando, comenta alguma coisa. Essa presença compartilhada, ainda que em silêncio, é muito importante especialmente para crianças menores. Não adianta nesse momento termos sentimentos culposos, pensando que as crianças vão “ficar marcadas”. Elas são seres extremamente resilientes, que sabem o que é uma situação de perigo e privação.

*Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Ele é um dos coordenadores do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP e ganhador do prêmio Jabuti pelo livro "Estrutura e Constituição da Clinica Psicanalítica”.

** Publicação da plataforma Porvir, na edição especial Educação em Tempos de Coranavírus em parceria com o LIV - Laboratório Inteligência de Vida.

Fonte: Texto extraído e adaptado, em 17 de abril de 2020, do link : https://porvir.org/as-familias-vao-ter-que-criar-uma-nova-experiencia-compartilhada-diz-christian-dunker/

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